No último painel do seminário promovido pela Assembleia Legislativa para registrar os 60 anos do Movimento da Legalidade, o ativista em direitos humanos Jair Krischke foi categórico em vincular os ataques à democracia promovidos na atualidade aos fatos que em 1961 desencadearam a resistência gaúcha, liderada por Leonel Brizola na defesa da Constituição e da posse do vice-presidente João Goulart, logo após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto. "Como naquela época, militares operam em ações que ferem a democracia brasileira", afirmou o ativista que, durante a ditadura militar, desvendou o sequestro de dois uruguaios em Porto Alegre pelo aparato estatal.
A deputada Juliana Brizola (PDT) e o ativista político Christopher Goulart, ambos netos, respectivamente, de Leonel Brizola e João Goulart, foram os mediadores do painel, realizado na noite desta quinta-feira (2) no Memorial do Legislativo, a antiga sede da Assembleia.
Assembleia lança publicação eletrônica em comemoração à data
Em participação por videoconferência, o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Gabriel Souza (MDB), transmitiu mensagem aos painelistas e participantes do Seminário. Ele anunciou o lançamento de livro eletrônico em comemoração à data dos 60 anos, com relato detalhado dos acontecimentos e a reprodução dos discursos parlamentares da sessão permanente, evidenciando a importância da Assembleia na defesa da democracia no Brasil. “O tema é cada vez mais atual. Os tempos mudaram, mas as premissas são as mesmas. A Assembleia defende a democracia, a Constituição e principalmente o estado democrático de direito”, assegurou.
Testemunha da história
Como testemunha da história, Jair Krischke disse que “a Legalidade dos anos 60 não terminou, é só olhar o cenário brasileiro”. Ele incluiu os episódios daquele período no que avaliou como "uma série sequencial que se repete na história do país, sempre com o sentido de ameaçar e ferir a democracia e suas instituições."
Sobre a Legalidade, descreveu uma trama montada por militares para tentar o golpe, fracassado pela resistência do movimento, mas continuado em ações como a aprovação da emenda parlamentarista, para impedir que João Goulart assumisse com a plenitude o cargo presidencial, artifício que teve em Tancredo Neves um fiel escudeiro. "O próprio Tancredo foi eleito de forma indireta, quase três décadas mais tarde, quando a Campanha das Diretas Já também foi alvo das estratégias golpistas dos militares brasileiros", lembrou.
Krischke disse que documentos da Fundação Getúlio Vargas ilustram e comprovam os movimentos da elite militar, como Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, contra a democracia brasileira. "Divulgam ameaças de que a posse de Jango implantaria o comunismo no país e, por isso, sugerem a mudança para o parlamentarismo." Lembrou do período de governo de Getúlio Vargas, com a fúria militar contra o então ministro do Trabalho, o próprio João Goulart, quando foi anunciado o aumento de 100% do salário mínimo. Jango acabou afastado do cargo.
Diferentemente de outros países da América Latina, a passagem do Brasil da ditadura para a democracia foi classificada por Krischke como “uma transação, acordo que deveria consagrar a impunidade dos autores de crimes de lesa-humanidade, culminou com a Lei de Anistia, que é de autoanistia e garantiu a impunidade”. "Os atuais solavancos evidenciam uma democracia que não se consolida", afirmou.
Ele também referiu a bravura de personagens como o capitão Alfredo Daudt, do Esquadrão do Grupo de Caças da Base Aérea de Canoas, responsável, com um grupo de sargentos, de impedir o bombardeio do Palácio Piratini, prometido pelos militares. E a extraordinária mobilização popular liderada por Brizola pelos microfones da Rádio Guaíba instalados nos porões do Palácio Piratini. "Quando o governador anunciou pela Cadeia da Legalidade a ameaça de bombardeio, em torno de cinco mil pessoas lotavam a Praça da Matriz, e em pouco tempo mais de 50 mil se deslocaram de toda a cidade e do interior para aderir à resistência e defender a integridade democrática", lembrou Jair, que também estava lá. “Brizola inaugurou nas ondas de rádio o que hoje se chama redes sociais”, comparou.
Mediadores
A deputada Juliana Brizola, líder da bancada do PDT na Assembleia, em participação virtual, elogiou a iniciativa do Parlamento em registrar as seis décadas do episódio liderado por seu avô, mas lamentou que o governo do Estado tenha ignorado a data, mesmo tendo sido o Palácio Piratini o palco de 13 dias que colocaram o Rio Grande do Sul no protagonismo da política brasileira em defesa da democracia. Ela também concorda que “a falta da justiça de transição, essa anistia ampla e irrestrita que foi negociada e que nos transformou em analfabetos sobre todo o processo, tudo está refletido nestas instabilidades”.
Agradeceu, ainda, as referências a seu avô Alfredo Daudt, que padeceu a perseguição política e foi dado como morto, tendo que fugir para sobreviver. Sobre Brizola, disse que amargou o mais longo exílio das lideranças da época - permaneceu 15 anos fora do país - e, ao retornar, adotou moderação sobre a Legalidade. Na avaliação de Juliana, com o objetivo de alcançar a ocupação dos espaços políticos na redemocratização. “Acredito que foi um equívoco dele, deveria ter colocado o dedo na ferida. Mas tinha seus motivos”, ponderou.
Christopher Goulart, que é suplente de senador pelo PDT, disse que registrar os feitos na Legalidade não é saudosismo, mas a exposição de um modelo de nação, com respeito ao estado democrático de direito, como os exemplos deixados por Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola.
Depoimento de Pedro Simon
Também o ex-governador e ex-senador Pedro Simon (MDB), encaminhou vídeo em que destacou a inegável liderança do então governador Leonel Brizola na construção dos apoios e mobilização popular que fizeram do Movimento da Legalidade a resistência ao golpe que estava em curso na época. Ele destacou ações legislativas obscuras, como a decretação de vacância da presidência da República pelo Senado Federal em sessão chamadas às pressas, sem quórum e sem convocação, para legitimar o presidente da Câmara dos Deputados no cargo. Esse ato, disse Pedro Simon, teve moção de sua autoria decretando a falsidade daquela sessão e solicitando a sua anulação, “em termos históricos, não teve validade”, afirmou.
O presidente do Instituto Histórico e Geográfico do RS, Miguel Espírito Santo, acompanhou no Memorial o último painel do Seminário. Nos dois debates anteriores realizados durante a semana para registrar os 60 anos do Movimento da Legalidade, painelistas analisaram o tema do ponto de vista histórico e jornalístico.